Um cronista nosso, num texto bem humorado, relatou ter tomado uma decisão radical quando se viu de corpo inteiro diante do espelho: “Senti um laivo de desprezo por mim mesmo e murmurei baixinho: — É a decadência... A decadência...Nunca mais vou usar abrigo. Nunca mais. Jeans em casa, em nome da dignidade”.
Invejo essa lucidez que se impõe ao conforto nosso de cada dia.
Em nome da dignidade, pantufas nunca mais? Amanhã eu penso nisso, hoje tá tão frio...
Sim, estou vivendo um caso de amor com as minhas pantufas. E com meus moletons e leggings e mantinhas - não demora, ganham vida e saem por aí sozinhos pra tomar um ar. E o cabelo? O meu é cacheado, achei por bem cortá-lo eu mesma - são cachinhos, resolvo fácil. Até o dia que me olhei no espelho e enxerguei um lindo espantalho.
São cada vez mais visíveis, visuais mesmo, os efeitos desses tempos de trabalho em casa, cinema em casa, yoga em casa, jantar em casa, reunião em casa, academia em casa, em casa em casa em casa. E eu que amava ficar em casa...
A missão roupa sapatos unhas make up echarpe brinco e cia para cruzar os poucos metros daqui até ali, e dali até aqui, no colossal espaço do nosso casulo desafia até o mais afiado instinto de autopreservação.
Uma amiga, fiel a esse bem-estar-em-casa, dia desses deu um show de subversão. Tinha uma reunião de manhã. Ajeitou o cabelo e colocou batom. Só não tirou o pijama: pôs um casaco por cima. Antes de começar a reunião, olhou a própria imagem na tela e percebeu que o casaco deixava o seu segredo explicitamente à vista. Pegou uma echarpe que caía linda com o casaco, e pronto. Reunião aberta, quando alguém falou: “Tá bonita, fulana, se puxou, heim?” Com uma sacada simples, e com a serenidade de quem se sente e se percebe bem, ela resolveu o que já andava pra lá de resolvido.
É importante gostar do que vemos sempre que nos vemos. Quando começamos a não gostar, o espantalho, coitado, não tem nada a ver com isso. O problema tá lá nas camadas mais fundas do nosso look.
Que venha a nós essa lucidez urgente de batons ou jeans ou de puro amor - um sintoma claro de que andamos um luxo. Por dentro.
Até.
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