Crescemos acostumados a falar e a ouvir a expressão - tratado feito um bicho - quando nos referimos ao abuso indecente, covarde e brutal de alguém sobre outro alguém mais fraco. Algo assim repugnante para quem é orientado pelo respeito indiscriminado. E que não esconde sua intolerância com desaforos.
Era uma quarta-feira normal de compromissos, distrações, preocupações e surpresas. Sugeri à minha filha, Gabi, almoçar comigo num bistrô em frente ao meu escritório que serve comida honesta e bem feita, com farta mesa de legumes, verduras, frutas, grãos e afins – a Gabi é vegetariana. É bom sequestrar um filho por vez e só pra si, num intervalo de conversa mansa e acalorada.
Nos servimos de salada, muita salada. Somos saladeiros. E saladeiros com método - primeiro comemos salada e o prato quente que espere a vez. Na sequência, arroz, legumes e uma posta de peixe que estava uma delícia. Distraída, o que me acontece mais ou menos a cada cinco segundos, disparei: “Filha, este peixe está demais, experim...” Emendei - sorrindo verde - “Hah, peixe, claro que não.” A resposta veio feito arpão: “Peixe delicioso e morto, mãe. Assassinado”.
Me contive para não chorar da vontade que me deu de rir. Ainda bem, pensei. Imagina engolir o infeliz vivo. Barbatana raspando, cosquinhas goela abaixo. E se fosse o Nemo? E lutasse para se safar? Náusea. Culpa pelo ato falho? Sim. Culpa pelo peixe? Nem pensar. Um sorriso de conciliação. O silêncio que fala e escuta. Recordei de um almoço de domingo quando meu marido seduzido por um pernil de cordeiro, engoliu em seco: “Era ainda um bebê, pai.”
Vegetariana pode apenas ser a síntese ou a metáfora para uma pessoa orientada pelo respeito a bichos e humanos e que não esconde a sua intolerância com desaforos. A Gabi é vegetariana por ideologia. Aprecia carne, especialmente de gado. Um churrasco, um salsichão no espeto, ou um vazio no forno. Ela ama um vazio no forno. Renunciou ao prazer da carne em benefício do que acredita. Tem repugnância pela forma de (re)produção em larga escala, impiedosa e animal. Despreza a crueldade com que são tratados estes seres também vivos de alma e sentimento. Despreza a ganância que separa o filhote da mãe. Despreza a ganância que confina a vida. Despreza a indiferença do bicho homem. Manifesta e exerce a sua não indiferença assim, com sacrifício.
Levantei para pagar a conta e pedi ao garçom mais uma água sem gás - sou movida a água e sempre me previno. Lá veio o arpão: “Mais uma garrafinha? Tu sabe, mãe, onde todo este plástico vai parar?" Insinuei alguma reflexão, mas o riso venceu: “Filha, tu não faz ideia do que é ter uma Gabi na sua vida”.
Aquele almoço caiu bem. Alimento leve faz isso com a gente. Saímos saciadas para mais uma tarde de compromissos, distrações, preocupações e surpresas. Ela, confiante na possibilidade de certos animais reverem sua humanidade (contando com a participação da mãe, é claro). Eu, com minhas silenciosas reflexões. E minha garrafinha de água. Com gás.
Até.
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