Nada nos pisa mais do que a indiferença, esse estado puro do tanto faz. Do desinteresse. Do descaso. Indiferença é ausência. É esse inverso perverso do amor.
Era previsível. E eu, desavisada, disse não. Cachorro em apartamento? Entrou, saio eu. E ponto final. Vinte e quatro horas! - e meu ponto final ruiu. A Tequila chegou com passinhos mansos e encabulados e divertidos. Como um serzinho pós-moderno, integra o novo contingente que habita lares, parques e corações. Parece feliz. Traz no focinho o ar de quem leva uma vida boa, bem servida de afeto e ração. Coisas dessas bem simples que unem gentes, unem bichos e unem gentes a bichos. Quem não gosta? Isso também explica o crescimento do mercado Pet. A febre pegou, porque é fácil demais se apegar. Reciprocamente. Testa, depois me conta.
De olho nisso, a sabedoria das ruas entra em ação. Final de dia, avenida engarrafada, sinal vermelho, exaustão, uma vendedora de qualquer coisa, e um homem (já maduro) segurava numa mão um cachorro coisa mais bonitinha e, na outra, um pedaço de papelão: “meu cachorrinho não come faz um tempão”. É provável que, além de passar fome, ele nunca tenha passado por um banco escolar. Quer dizer, atenção aí, gurus do marketing - ele é o cara. Ele é. O cara. Olha a sacada: “Eu virei paisagem, mas ele - o pet é pop. Isso vai funcionar”. Ele apelou para a única estratégia efetiva neste ou no velho marketing: toca no ponto sensível, seduz, envolve, provoca inquietação, ânsia, qualquer coisa. Vai na jugular.
Se o incorporamos à paisagem, não sei. A parte ácida dessa história não é o homem faminto numa esquina. É o caminho que a humanidade percorreu para chegar a este ponto - um ser humano que se percebe invisível na dor, na fome e na solidão em meio a milhares de iguais. Ele já não existe aos olhos dele. Mas sente fome. Vai fundo, então, na sua reserva de energia e criatividade para sacar uma saída e se salvar. Não disse? Ele é o cara - qualquer que seja o ângulo que você escolher.
É natural nos deixarmos levar a um estado de falsa indiferença - essa pele que vestimos para nos proteger de algo que nos deixa tristes ou incomodados ou desacomodados ou mordidos de indignação. Se é isso mesmo ou se também é ausência - nem quero saber. Me faz bem acreditar nas pessoas. Das que cruzaram naquela esquina daquele final de dia, acredito que - talvez - só algumas poucas tenham saído ilesas. Não há pele que nos proteja de uma pancada como aquela.
Até
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