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Guardada numa caixa



Das coisas que perdemos pelo caminho. Ou deixamos para trás. Ou das coisas que esquecemos de ser.


Ela tinha chegado há pouco menos de um ano na cidade nova e estrangeira. Não precisou muito para pensar, escrever, ler e até sonhar na língua local. Na escola, podia trabalhar em matérias alternativas, além da grade curricular. Como adorava contar histórias, foi fácil escolher as oficinas de literatura, entre outras e tão divertidas opções. O livro foi ilustrado e escrito por ela em inglês.


Naquela manhã, uma mulher muito grande, muito loira e com olhos muito azuis chegou à porta da sala de aula. Trazia tormenta só de olhar. Mulher pedra. Um pesadelo. Falou com a professora, que chamou a menina vinda do Brasil - o Principal, diretor da escola, convocava-a para uma conversa, right now.


Atordoada, a menina imaginou o que viria pela frente - naquela escola, não era permitido correr. Normas de segurança ou apenas normas. A cada recreio, o coach soava o apito para que ela parasse de correr. Ela nunca ouvia. E jamais parava. Era chamada quase que diariamente na sala da Coordenação sem saber o que dizer - a falta não era de juízo. Era de outra coisa que ela não sabia explicar. Prometia se corrigir. Até o próximo recreio, até sair do ar. E correr, impermeável, como só a liberdade é capaz de andar.


Jogou sua esperança numa possível boia salva-vidas vinda da professora, mas não levou. Seguiu pelo pátio - que ela jamais tinha percebido tão grande -, de mãos suadas com a mulher pedra em direção ao gabinete do Principal. A barriga contraída e os passinhos curtos agonizavam, não queriam chegar.


Na sala imponente e abarrotada de suspense e de livros estava ele, o Principal, sentado na cadeira de presidente da república. Ele também muito grande, muito loiro e com olhos muito azuis. Gelados, aos olhos dela. Convidou-a a se sentar na poltrona em frente à mesa. Um pequeno passo para o fim. Teria corrido demais por recreios demais? Teria ultrapassado todos os limites? Seria expulsa da escola? O que diria a seus pais?


Antes mesmo de sentar, percebeu o livro “The Big Family” - o seu livro! - bem ali na mesa do Principal. Ele abriu um sorriso que mostrava mais dentes do que ela jamais tinha visto. Sorriam os dentes e até o corpo enorme sorria, quando disse: “Congratulations, my dear.” Foi a senha para ela compreender o tom daquele encontro. Em segundos, ficaram amigos. O Principal, impressionado com a menina brasileira que, em pouco tempo, escrevia tão bem em inglês. Ela, com o coração aos pulos, percebeu que no azul dos olhos já era possível ver o mar.


Onde estaria aquela menina que corria impermeável como anda a liberdade? Pode que tenha sido guardada numa caixa. E esquecida ali. No dia em que se mudou. Será? Pouco importa. Das coisas que deixamos ou perdemos pelo caminho - não tem choro, todos deixamos e todos perdemos -, essa deve estar entre as mais suculentas e possíveis da gente reencontrar.


Até.

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