Se você vem lá do século XX (de antes da última década, tá?), é bem provável que já tenha traído a própria história algumas vezes. A cada ano a mais de vida, maior a chance disso acontecer. Coisas da nossa memória que nos protege de lembranças menores, será?
Aconteceu comigo há uns seis anos. Minha filha, então com 15, irrompeu no que seria um domingo pacífico decidida a aniquilar o inimigo. A crise: vencer a leitura de um clássico Machado de Assis para encarar a prova e a professora no dia seguinte. Eu poderia ter ficado bem quietinha. Ela só queria ouvidos de mãe dispostos a escutar. Traí meus anos de juventude e, por pouco, não completei a performance com o clássico “no meu tempo as coisas eram bem diferentes” (a gente é capaz de cada uma, né?). O evento nem evento era. Era uma menina adolescente normal, inquieta, afogada em hormônios e enfastiada tentando dizer que não estava na onda do Machado. E só. A ansiedade me roubou a chance de ser honesta. Falei, falei, falei. Só esqueci de dizer a ela o quanto eu odiava o Machado de Assis quando eu tinha 15.
Estrago feito, tratei de desatar a minha loucura. Nós, analógicos quase desajustados, vivemos a síndrome do onde tudo vai parar. Nem sempre nos mantemos impermeáveis às especulações que apontam o suposto “vazio” dos nativos digitais. Eles, jovens, acessam tudo e sabem tudo. Na superfície. Um horror. Bons tempos em que liam livros, berram os assustados, alertando para uma epidemia da ignorância e, sabe-se lá, para o funeral desta notável brochura impressa em papel.
Tá bem - o mundo digital é uma bagunça mais para tsunami que para marola. E daí? Como em todas as grandes inovações no decorrer da história, importa menos o meio e mais quem dele se serve, não é?
Essa sempre foi a minha aposta com relação aos meus filhos. Agora, se encontram respostas no livro e no e-book e na grande rede, não sei, mas me importo. E insisto e teimo e insisto e teimo e insisto e repito e repito e repito - certas coisas não podem simplesmente ir para o baú. Livro impresso é patrimônio e herança. Está sempre ali, fiel e constante. Não nos abandona por nada, nem mesmo quando cai a luz, a bateria, a conexão ou o servidor. Fora o cheirinho - só dele - que nos amansa. Fora o prazer de se sentir tocado por cada página. Nossa, como isso nos faz bem - um bom livro na mão desperta quase todos os nossos sentidos.
Minha filha, naquele ano do Machado, foi curtir a praia com o irmão, os primos, o vô e a vó. Junto com as roupas de praia e balada, carregava as fantasias de mais um verão. Com tudo isso em mente e com tantas conexões, colocou na mochila o livro “A menina que roubava livros” do Markus Zusak. Se ela gostou, não sei. Eu gostei.
Até.
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